A última segunda-feira da minha vó

Naquele dia acordei com uma sensação boa de recomeço. Levantei disposta e fui à luta.
Havendo muito o que fazer, tirei um tempo para adiantar as compras do almoço, colocar as roupas na máquina, regar as plantas, tomar um banho ao som de mantra, encher minha garrafa de água e começar a trabalhar no escritório.
A última mensagem enviada antes da ligação que mudaria o fluxo do dia foi sobre as férias da nossa funcionária.

Estava no meio de uma organização financeira e a concentração era tanta que dei um pulo quando meu celular tocou. A ligação era da minha mãe, pensei rápido em não atender e retornar assim que finalizasse os cálculos. Mas algo maior me dizia: “atende”.
Ouvi sua voz distante: “preciso de você aqui”. Quando respondi que estava indo, ela falou firme e mais alto: “agora!”

Isso já havia acontecido outras vezes. Muitas, inclusive. E eu sempre saia de casa num desespero absurdo. Dessa vez, eu senti diferente. Levantei imediatamente, mas fui com calma. Já sabia que era algo com minha vó e mesmo pegando chave do carro e organizando para sair, em silêncio, fui respondendo as minhas próprias perguntas. Minha filha resolveu me acompanhar, fato inédito nessas ocasiões. Não demorei 5 minutos para chegar e nos deparamos com minha mãe com olhos arregalados, meu amigo de infância e minha vó no chão.

Os desmaios eram recorrentes, mas dessa vez foi diferente. Aquele olhar perdido e corpo pálido me fez pensar em todos os possíveis desfechos. Eu e meu amigo recolhemos ela do chão na tentativa de levarmos para a cama. Seu corpinho suado e mole escorregava entre nossos braços e mesmo lidando com aquela cena a qual era preciso agir, meu corpo trêmulo já dava sinais de perder a força. A ambulância estava à caminho. Sentia meu coração batendo na altura do pescoço. Uma loucura.

Assim que a colocamos em sua cama, minha irmã chegou do trabalho. Ainda perdida, sem entender o que acontecia, ela se aproximou de nós. Meu corpo trêmulo e minha mente agitada não conseguia conciliar palavras, ação e emoção. Tentei ligar pro Dani, meu marido, mas não consegui concluir a ação. Naquela altura eu não conseguia me lembrar do número do celular dele.

Senti que minha vó estava indo… E com minha mãe, minha irmã e minha filha ao redor da cama eu acariciei seus cabelos prateados e supliquei à Deus em alto e bom som: “Deus, a minha vó não vai sofrer!”
Eu não consigo me lembrar o que mais falamos depois disso… mas sei que todas nós falamos com Deus naquele momento. Minha vó deu seus últimos suspiros, tirei minha mãe da cena, falei olhando dentro do olho dela todas as palavras de afirmação que vinham na minha mente naquele momento. Aos berros. Os vizinhos começaram a chegar. E enquanto eu me esforçava exaustivamente para colocar a colher de açúcar exatamente dentro do copo de água, lembrei de respirar: Inspira, solta. Inspira, solta. Inspira, solta. Inspira, solta.
Só assim conseguir fazer o copo com água e açúcar chegar até minha mãe. No quarto, a equipe médica tentava reanimar a minha vó. Apesar de debilitada e velhinha, assistir a vida ganhar ponto final era surreal. Sozinha, catei a primeira parede onde pudesse me escorar e chorei em desespero até ser interrompida por uma vizinha que se aproximou para consolar.

Encorajada por uma força divina, eu, a neta mais velha, me esforcei para deixar aquele ambiente mais leve. E, sei, era exatamente assim que minha vó faria.

Segunda, terça. Jamais tinha passado pelos trâmites de um sepultamento. Amedrontada pela estreia, segui adiante até onde eu consegui ir. Segurei a onda e deixei lágrimas escorrerem através do óculos escuro. Preferi não lidar com as memórias naquele momento. Rever as fotos e vídeos e repensar na morte só me aproximaria da tristeza e me afastaria da força que naquele momento era necessidade vital.

Quarta. Contei os dias para chorar sozinha, sem que fosse parada por alguma aproximação humana. Imaginei um cenário, um momento meu, com porta trancada, banho quente, música e catarse. Mas o peso do nó na garganta me tirou as forças. Tomei um banho rápido, coloquei um pijama confortável, me joguei na cama. No youtube, digitei “Los Hermanos”, como se me preparasse para uma prece. E era. A primeira música da lista não foi acaso, “Primavera“. Me enrolei em posição fetal, não perdendo de vista as cenas que passavam na tela, e chorei compulsivamente. Até esvaziar.

Primavera brilhando
Em seu olhar
E o olhar
Que eu guardo
Na lembrança
Ainda traz a esperança
De te ter
Ao meu ladinho
Numa próxima
Estação!…”

Hoje também é segunda-feira e nunca saberemos quando será a última de alguém ou de algo. Pensar nisso não me amedronta, mas me direciona. Eu sei exatamente onde quero chegar. Não quero contar os dias desde aquela segunda-feira, mas quero ressignificar aquele dia e todos os outros. Quero aproveitar o benefício da saúde, da disposição, da força e da sabedoria e fazer meus dias e os dias dos meus serem plenos de pequenas alegrias e paz.

Eu ainda choro. Comedidamente. Sob efeito quase anestésico de um coração tomado de tranquilidade, tenho flertado com profundas reflexões e pensado muito nesses encontros e na linha do tempo entre nascimento e morte. Pensar nisso é profundo e benéfico. São tantos aprendizados capazes de nos remodelar que capacita até os sentimentos mais vulneráveis.

E exatamente por ter consciência da finitude dessa vida que, por mim e pelos meus, decreto recomeços todos os dias. Não só às segundas.


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