Uma saudade de você, vó.

Naquela segunda feira, em setembro de 2023, tenho certeza que você me poupou de te ver morrer em meus braços. Só por isso consegui te carregar suada e molinha até a sua cama. Lá você corou de novo, me deu esperança e segundos antes de partir afirmou que queria uma coca-cola. (escrevi sobre aqui).

Minha vó e eu

Eu ainda choro de saudade, vó. Sonho com você quase sempre. Penso em você em toda festa, em todo prato de comida boa e em todas as datas comemorativas. Lembro, sorrindo, de suas frases tolas, engraçadas e julgadoras, e das inúmeras tentativas de completar uma frase inteira depois do AVC, que sempre resultou em gargalhadas, inclusive as suas.

No natal me deparei com castanhas portuguesas no mercado e não contive o pranto. Transbordou lá do fundo do peito. Constrangida, catei as castanhas, engoli o choro e rapidamente fugi em direção ao carro. Portas trancadas, engrenei a ré como se quisesse voltar aquele tempo, onde as castanhas portuguesas compunham a cena da mesa farta, árvore de natal feita de chocolate, presentes, gente falando alto e o barulho de gás ao abrir mais uma garrafa de coca-cola.

Hoje é páscoa e depois que nós crescemos e os maiores ovos de páscoa do mundo, feitos por você, perderam o valor, páscoa virou assunto de gente grande. Era dia de bacalhau, né vó? Era “cantar” o menu e você se deliciava em longo som: “Hummm… gosto muito.” Falava com orgulho do bacalhau se referindo ao seu pai português com propriedade, aquele que você nunca teve proximidade, mas jamais julgou.

Sei que você guardou suas dores, viveu num mundo paralelo, criou sua própria realidade e por muitas vezes insistia para que nos adequássemos à ela. Sei da sua vontade de viver, experimentar e realizar, mas também sei da dificuldade de viver presa a muitos padrões limitantes. Vi você perdoando tantas pessoas, deixando menos dolorido e tentando ser “livre”. Acredito que livre, livre mesmo só depois do avc. Das doenças psicossomáticas, essa em especial, veio da sua desordem emocional. E, no seu caso, o avc foi libertação. Todos os olhos se voltaram para aquela Marli que nos fez ser forte. E te vi se desfazendo das crenças, deixando o controle, sendo quem você realmente gostaria de ser. Leve. As preocupações ficaram todas com a minha mãe que foi sua cuidadora invencível e te ofertou todo carinho, cuidado, atenção e diversão que podia (e não podia) dar. Restaurante, shopping, festa, água de coco na praia, salgadinho, batata frita, pizza…

A saudade não me enlouquece. Sei bem o lugar que ela ocupa. Mas confesso que é um pesar não tê-la aqui. Sinto uma espécie de solidão, como se ninguém mais fosse me olhar com os seus olhos. Era só você que impunha suas mãos sobre a minha cabeça e decretava qualquer coisa benéfica “em nome de Jesus”. Você era a própria fé e festa. Lembra dos aniversários das bonecas, dos cachorros, dos vizinhos…? E os nossos aniversários que você fazia ser feriado nacional. Eu juro que venho tentando fazer igual.

Esses dias, enquanto ajudava a minha irmã a arrumar sua casinha nova, no meu silêncio pensava em você. Imaginei você fazendo festa em cada um daqueles ambientes e preparando todo o enxoval: lençol, toalha, lixeira, planta e tudo mais que coubesse no limite do cartão Carrefour. Carrefour era um dos nossos passeios preferidos. Da tecnologia ao saquinho de Bubballo que ninguém mais levava pro lanche da escola. Vó, o primeiro celular que eu vi na vida era seu. Aquele de flip, da Motorola, de linha. E nós ficávamos andando na rua com a antena em riste em busca de sinal (que nas Vargens nem tinha rs). O vídeo cacete acoplado na TV era novidade também e você instalou no seu quarto onde passávamos as tardes de domingo vendo TV. E quando surgiu o microondas e lava-louça você comprou um para cada filha. Você era muito fora da caixinha, vó.

Quando engravidei aos 16 anos você foi a primeira a me acolher e no dia seguinte da notícia que abalou a estrutura familiar, foi você quem chegou com enxoval pronto. E se apaixonou perdidamente pela bisneta que era extensão de mim. A Anna Julia foi a sua “pequeninha”, até seus útimos dias aqui.

Eu, minha filha (com vestido de cinderela que minha vó mandou fazer) e minha vó segurando a vela.

Todas as nossas conquistas eram celebradas. Seus olhos brilhavam e você fazia questão de ser presença. Faculdade, casamento, dança, canto, culto, festa, cerveja (até cerveja), cachorro, filho, comida, música. Todas as realizações de cada um de nós era festejado com prazer.

Com a Ipa, nossa cachorra.
Na minha formatura da faculdade.

Foi você quem me ensinou a ler e escrever. Era alfabetizadora de mão cheia.
Lembra que o David disse que escolheu ser professor por te admirar? Eu escolhi festejar todo e qualquer motivo por causa de você também. Penso no quanto é bonito ter passado por essa vida tocando tanta gente…

O David pediu a namorada em casamento no cinema, vó! Você estaria batendo palmas na primeira fileira, se empanturrando de pipoca e guaraná.

Tenho certeza que todos nós sentimos sua falta nesse dia.

E estamos sentindo hoje de novo que não teve bacalhau e não teve você. Saímos para comer com sua filha que nos últimos anos virou sua mãe, com a Vanessa, sua filha do coração, Jessica, minha irmã, e Anna Júlia, a pequeninha. Falamos pouco de você, mas celebramos falando alto, com comida boa, coca-cola e uns dedos de prosa. Certeza que você ficou feliz.

Eu não sei como é aí onde você está, mas tenho certeza que você está cercada de crianças, produzindo uma mega celebração de páscoa no céu e certamente levou o coelhinho, que nada tem a ver com a ressurreição, mas você faria questão de confeccionar orelhinhas e os rabinhos de pompom.

Aproveitando que hoje é o dia da ressurreição e você repetiria muitas vezes que “porque Ele vive, posso crer no amanhã” que sejamos inspirados pelos seus ensinamentos, ora rígidos, ora lúdicos, e sejamos fortes para renascer, desatando nós, desfazendo grande acordos geracionais e acima de tudo respeitando e agradecendo por sermos parte da sua história, de quem você foi e de tudo o que aprendemos até aqui. Que possamos nos mover com propósito em direção ao entendimento e cura de qualquer possível doença física e mental. E que sejamos unidos, em festa, exatamente do jeito que você ensinou, sem deixar ninguém de fora.

Feliz Páscoa, vó. Estamos furando muitas bolhas por aqui e, mesmo com saudade, estamos bem.

Te amo.

Beijo da neta mais bonita.


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Por que ter um blog?

Enquanto penso, organizo. Enquanto escrevo, repenso. Enquanto leio, transmuto.

Os textos mais profundos, cada hora “batem” de uma forma. E eu adoro reler.
Os posts mais informativos com links, roteiros, música, receitas ficam guardadinhos em arquivos. Adoro ter.

Curiosidade

Até poderia até soar como egoico para desconhecidos, mas eu sinceramente acho que tenho muito o que contar.

Já escrevi de outras formas: por e-mail, escondido no bloco de notas, por whatsapp, no google docs, no notion, no evernote, no blog do Sítio Veredas, e em outro blog pessoal, o Pudim de Letras, que segue lá, publicado e cheio de lembranças de uma imaturidade bonita. Foi através do Pudim que conheci duas pessoas especiais: Raysla e Leonardo. Eles também se conheceram através dos seus blogs, se casaram e vieram me visitar no Rio de Janeiro.

Propósito

Dividir os aprendizados é um ato de serviço. E servindo se faz potência.

São quarenta anos de vida e 23 deles sendo mãe. Já poderia até ser o bastante se entre esses anos não houvessem tantos rompimentos comigo mesma, perdas e separações, apegos e presença, tentativas e erros, mágoas e perdão, tristeza e alegrias, muitos aprendizados. Assim como na vida de tantas outras pessoas que compartilhando suas vitórias e derrotas também me colocam em movimento. Aliás, agradeço. É por todos esses professores da (de) vida que estou aqui.

Daqui me importo com a estética (gosto de coisas bonitas e minimamente organizadas), mas não com o engajamento. Deveria? Talvez. Ainda tenho uma timidez estranha, que limita. Quero falar, mas não quero que saibam quem eu sou. Sabe como?

Não sei o que pode acontecer e nem em quem vai chegar as coisas que escrevo por aqui, mas todas as vezes em que escrevo desejo fortemente que haja identificação com quem passar por aqui.

Adiante

E assim, sigo adiante. Prometo ser mais ativa, ainda que continue “falando com as paredes”.
E apesar de não pensar no engajamento, eu quero sim aprimorar esse crescimento. Quero me envolver e ser envolvida por quem lê e continuar aprendendo com outras interações. Servir à alguém e não às paredes. Mas todo passinho já é caminho.


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